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terça-feira, 5 de junho de 2007

O aquecimento global e nossas próprias casas

Coordenador do Projeto Cabuçu, o prof. Antonio Manoel de Oliveira fala sobre os efeitos do aquecimento global
Por: Antonio Manoel de Oliveira

As preocupações sobre o aquecimento global, que jorram dos países desenvolvidos, podem distorcer o equacionamento dos problemas ambientais das nossas próprias casas, regionais e locais, há muito tempo impostas por condições de fisiografia tropical, de história do uso do solo e sociais, totalmente diferentes dos ambientes daqueles países.

Entretanto, na recente pesquisa realizada pelo Ibope, a preocupação que o brasileiro demonstra com o clima surpreendeu os pesquisadores. Mesmo entre aqueles que só estudaram até o ensino fundamental e entre os que ganham até um salário mínimo, cerca de 80% afirmam que estão preocupados com o problema. Dentre todos os pesquisados, 63% disseram que a prioridade do País deve ser cuidar do meio ambiente, mesmo que isso prejudique o crescimento. Os pesquisados identificam como impactos do aquecimento, a queda da produção agrícola, as enchentes, as doenças tropicais e as secas.

No mundo acadêmico nacional, constata-se também uma crescente preocupação com o tema do aquecimento global, mobilizando os cientistas para a realização de estudos dos impactos em território brasileiro, assim como contribuições aos estudos em escala global.

Entretanto, ambas preocupações (do povo e dos acadêmicos) correm o risco de ficar presas no foco das abordagens da casa global, sem incluir na pauta os problemas ambientais das casas locais e regionais.

Fatos e medidas ambientais indicam que as alterações climáticas já vêm acontecendo nas grandes metrópoles, formando ilhas de calor como resultado da substituição das coberturas vegetais pelos materiais de construção, sobretudo asfalto e cimento.

Um exemplo está nas temperaturas medidas pelo Instituto Astronômico e Geofísico da Universidade de São Paulo no Parque Estadual das Fontes do Ipiranga. De acordo com estes dados, houve um aumento médio de 2,1ºC nos últimos 75 anos, enquanto o 4.º Relatório do IPCC (sigla em inglês para o Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas) indica que, em cerca de 100 anos (século XX), o aumento médio global foi de 0,76ºC.

Devemos considerar que os estudos realizados pelo IPCC sobre mudanças globais estão fortemente influenciados pela cultura dos países do Hemisfério Norte, os chamados países desenvolvidos. Embora todas as nações, sem exceção, mesmo aquelas que em nada contribuíram para mudanças globais, possam vir a ser afetadas por elas, verifica-se que as condições ambientais desses países são muito diferentes das demais.

Os países europeus, do Velho Mundo, vivem heranças ambientais de vários ciclos de uso do solo, que se sucedem há milhares de anos. Suas coberturas vegetais, mesmo as naturais, representam uma natureza humanizada ao longo dos séculos.

Embora as tecnologias ligadas ao uso do solo venham evoluindo, dos arados às modernas máquinas agrícolas, das pequenas ruas às grandes autoestradas, com impactos ambientais diferenciados, o solo europeu já foi reciclado tantas e tantas vezes que novos usos pouco podem alterar suas respostas, como atestam as ruínas encontradas sob as velhas cidades. Assim, esses países passaram a ser potencialmente mais sensíveis às mudanças globais.

Ao contrário, o Brasil, como um território do Novo Mundo, além de ainda possuir terras virgens ou sem utilização intensa, passou, nos terrenos onde hoje são praticadas atividades agrícolas, por um número muito menor de ciclos de uso, experimentando, quando há mudanças do uso do solo, especialmente no caso da transformação de rural em urbano, fortes desequilíbrios que se manifestam por processos geológicos adversos, como erosões, assoreamento e enchentes mais freqüentes e intensas.

Tão importante quanto as diferentes histórias do uso do solo europeu e brasileiro, são as condições climáticas que diferenciam o Brasil dos países desenvolvidos. A maior parte tropical do território brasileiro aponta para processos que não são vivenciados pelos continentes do Hemisfério Norte, como as intensas chuvas tropicais; as grandes espessuras de alterações de rochas; a presença de rica rede de grandes rios; e o comportamento torrencial das drenagens das serras tropicais.

Outra diferença notável é a social, que distingue o Brasil, com uma má distribuição da riqueza, dos países desenvolvidos. São exatamente as camadas de menor poder aquisitivo que estão sujeitas às condições ambientais adversas dos referidos processos induzidos pelo uso inadequado do solo, que gera as nefastas áreas de risco urbanas.

Na Região Metropolitana de São Paulo vemos os mananciais sendo poluídos e em rota de colapso, evidentemente não por causa de mudanças globais, descortinando ações significativas à espreita: empréstimos internacionais para despoluição como o ofertado recentemente pelo Japão para a Billings; e a espera do melhor momento para tornar viável a construção de novas obras de engenharia para transpor a água do Vale do Ribeira ou de Barra Bonita, num processo que parece aguardar que as degradações cresçam para serem solucionadas apenas através de ações de grande porte com “ajuda” de países desenvolvidos.

É esse quadro que também leva à pergunta: a quem mais interessa intensificar os esforços acadêmicos de pesquisa para o tema das mudanças globais? Essa indagação ganha mais peso quando leva em conta a linha estratégica proposta pelo geopolítico americano Zbigbiew Brzezinski, que no artigo “América’s role in the Technetronic Era” preconizava, já nos anos de 1970, a estratégica “ligação vicarial dos Estados Unidos com as elites do mundo não desenvolvido”. Esta tática de cooptação das elites não teria, no tema das mudanças globais, terreno fértil para continuar avançando? É uma questão que faz recordar o conceito que circulou naqueles mesmos anos sobre a cultura do subdesenvolvido: “Sentir angustiante falta de certo creme dental para escovar os dentes sem não ter comido ainda”.

É neste quadro brasileiro que os esforços dos cientistas precisam continuar voltados prioritariamente às persistentes questões atuais impostas pelas transformações ambientais que estão ocorrendo nas nossas casas locais e regionais. É também nesse quadro que quaisquer esforços de conscientização da população sobre as mudanças globais deverão sempre começar por nossas próprias casas. Mesmo porque são estas que possibilitam o exercício da ação local, por um melhor meio ambiente, inclusive global.



Antonio Manoel de Oliveira é professor do programa de Mestrado em Análise Geoambiental da UnG (Universidade Guarulhos) e doutor em Geografia, especialista em Geologia de Engenharia e do Meio Ambiente.

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